Publicado em 21 maio 2020
Nota sobre o uso da cloroquina / hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19
Uma das razões para o impressionante impacto da pandemia da COVID-19 na saúde mundial é a inexistência, até o presente momento, de vacinas ou antivirais específicos aprovados para prevenir ou tratar a enfermidade, cuja letalidade real ainda nos é incerta, pois depende grandemente da disponibilidade de testagem ampla e da qualidade do serviço de saúde.
Diante das enormes dificuldades para se desenvolver, em período curto, fármacos e vacinas específicas para tratá-la e preveni-la, a atenção se volta para fármacos já existentes e com segurança atestada pelo largo uso. Alguns estudos demonstraram que fármacos já usados para outras doenças têm atividade in vitro contra o SARS-CoV-2, agente etiológico da Covid-19. Os estudos foram feitos em laboratório em culturas de células (células genéricas do tipo Vero, obtidas a partir do rim de macacos), em ambiente que não corresponde ao que ocorre no organismo humano. Isso aconteceu com a cloroquina (CQ) e a hidroxicloroquina (HCQ), fármacos amplamente utilizados, de baixo custo, com registro em todos os países, e cujo reposicionamento no uso para outras doenças prescindiria de estudos iniciais de segurança de fase I, realizado em pessoas sadias1–5.
Maisonasse et al.6 realizaram o primeiro estudo de HCQ para SARS CoV-2, combinada ou não com azitromicina, em células do trato respiratório e em modelo animal (utilizando camundongos transgênicos e primatas não humanos). Esses autores confirmaram o efeito antiviral da HCQ em células genéricas do tipo Vero. Contudo, ao avaliar a ação da HCQ em células do trato respiratório humano, o mesmo efeito não foi encontrado. Os autores também testaram a ação do fármaco isolado ou em combinação com azitromicina, em todas as fases do COVID-19 em animais (fase profilática, fase inicial, fase intermediária, e fase grave) e não observaram redução da carga viral, dos sintomas nem do comprometimento pulmonar em nenhum caso, concluindo que testes em humanos com COVID-19 seriam dispensáveis.
A falta de atividade in vitro da HCQ em células do trato respiratório humano6 é explicada pela necessidade de receptores específicos para entrada dos vírus na célula. Esses receptores não são encontrados em células genéricas do tipo Vero, nas quais a atividade inibitória de HCQ havia inicialmente sido demonstrada. Hoffmann e colaboradores7 confirmaram que a entrada do SARS-CoV2 nas células respiratórias ocorre através de mecanismo distinto daquele que é inibido pela HCQ.
Inúmeros estudos demostraram que a CQ é capaz de inibir, in vitro, a replicação dos vírus da raiva, da poliomielite, das hepatites A e C, influenza A e B, enterovírus EV-A71, Chikungunya (CHIKV), dengue, zika, vírus de Lassa, Hendra e Nipah, da febre hemorrágica da Crimeia-Congo, vírus Ebola, imunodeficiência humana (HIV), coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV) e vírus herpes simplex 8–30. Em geral, são necessárias doses mais elevadas do que as utilizadas para o tratamento da malária, indicação tradicional para o uso da CQ. No entanto, nenhum estudo in vivo confirmou a eficácia da CQ para o tratamento de qualquer uma dessas viroses, motivo pelo qual ela permanece utilizada, com a eficácia e segurança, apenas para o tratamento da malária, principalmente por Plasmodium vivax, uma das mais importantes espécies causadoras da doença no homem.
A CQ não impediu a infecção por influenza em ensaios clínicos randomizados31,32 nem apresentou atividade contra os vírus ebola, CHIKV, influenza e Nipah em modelos animais8,33–37. Em um modelo de infecção por CHIKV em primatas não-humanos, o tratamento com CQ agravou a febre, retardou a resposta imune celular e se associou com depuração viral incompleta37. Um estudo clínico mostrou que o uso de CQ não se associou à melhora do curso da infeção por CHIKV38, nem à diminuição da frequência de artralgia crônica após a infecção37. A CQ não é recomendada para o tratamento de pacientes com infecção pelo HIV39–43.
A CQ apresenta efeito modesto na redução da carga viral de hepatite C, quando associada a interferon peguilado e 44–46 não sendo um fármaco indicado para o tratamento dessa infecção.
A HCQ, análogo da CQ, mas com perfil mais favorável de segurança renal e ocular, é utilizada para o tratamento de doenças autoimunes em função de seu efeito imunomodulador, tendo se mostrada ativa contra SARS-CoV-2 em experimentos in vitro, em doses menores que CQ5. Uma revisão sistemática de 86 artigos envolvendo 127 pacientes mostrou equilíbrio de toxicidade cardiológica com os dois fármacos (CQ e HCQ), embora a toxicidade ocular seja maior em pacientes em uso prolongado de CQ47.
Os estudos com pacientes com COVID-19 utilizando CQ e HCQ são elencados abaixo, conforme gravidade dos pacientes envolvidos.
Na abordagem clínica das doenças infecciosas, a fase da doença pode influenciar o resultado da ação e influir na indicação de um agente antimicrobiano. No entanto, não há razão para se postular a ausência completa da ação em fases mais avançadas, e/ou que ela seja exclusiva nas fases iniciais e leves de uma doença infecciosa. Seria como não recomendarmos a administração de antibióticos em pacientes com sepse grave, na UTI.
Em princípio, a ação de um antimicrobiano será tanto melhor quanto menos microrganismos existirem e, quanto mais imediato for o início do tratamento de uma doença infecciosa, melhor se espera que seja o resultado.
A questão em debate se refere à ação de CQ/HCQ como antiviral, em que se pretende diminuir a quantidade de vírus, reduzindo, assim, as complicações graves da evolução da infecção.
PACIENTES GRAVES COM COVID-19
1- Um primeiro estudo, realizado na China, evoca uma ‘aparente’ eficácia do fosfato de CQ em pessoas com pneumonia por COVID-19 sem, contudo, apresentar qualquer dado sobre as características das populações avaliadas (idade, sexo, peso, doenças anteriores e outros) e a segurança do fármaco (mortalidade, eventos adversos, incluindo os graves)48. O trabalho é considerado uma evidência anedótica, ou seja, sem força científica, um relato contado superficialmente pelos autores.
2- Um estudo realizado em Marselha, na França,49 baseou a sua análise do efeito de HCQ somente na detecção de vírus na secreção respiratória de 42 pacientes. O estudo descreve a ausência de vírus 5 dias após o início do tratamento no grupo de (6) pacientes tratados com CQ e azitromicina (57,1% de redução no grupo tratado só com CQ e 12,5% no controle). No entanto, não foram descritos os desfechos clínicos (se o paciente continuou hospitalizado, em UTI ou em uso de ventilação mecânica). Os grupos de pacientes tratados e não-tratados (que incluiu pacientes que recusaram o protocolo!) não eram comparáveis. Os que receberam a medicação haviam sido tratados no hospital dos autores e os demais (controles), em outros hospitais. Esse foi o estudo citado, em coletiva de imprensa, pelo presidente americano Donald Trump, levando ao aumento expressivo do número de prescrições da medicação para pacientes com COVID-19 nos EUA e no resto do mundo. Entretanto, devido às inúmeras críticas recebidas50, a própria revista que havia publicado o artigo, desculpou-se por tê-lo publicado, afirmando que ele não atingia os padrões técnicos mínimos necessários e prometeu investigar o trabalho.
Entre os problemas, os autores haviam retirado da análise, sem qualquer justificativa, 6 pacientes que haviam recebido HCQ (de um total de 26), três dos quais haviam falecido e um que havia sido encaminhado para a UTI. Além disso, em nenhum outro estudo publicado posteriormente, observou-se negativação total do vírus no dia 5 após o uso do fármaco.
3- Molina et al.51, em Paris, também na França, buscaram, sem sucesso, repetir o estudo descrito acima. Assim, prospectivamente prescreveram para 11 pacientes hospitalizados o esquema de HCQ e azitromicina descrito no estudo citado no item 2. Nos primeiros cinco dias de tratamento, um paciente morreu, dois foram transferidos para a UTI e outro descontinuou o tratamento no quarto dia devido a um prolongamento do intervalo QT.
Os swabs nasofaríngeos de 8 pacientes foram positivos para SARS-CoV2 nos dias 5 a 6 após o início do tratamento. Assim, embora com um número pequeno de pacientes avaliados e sem um grupo controle, esses achados são diametralmente opostos aos descritos pelo grupo de Marselha49, não tendo sido demonstrada ação antiviral ou benefício clínico do uso da combinação de HCQ e azitromicina.
4- Em outro estudo realizado na China não foi encontrada diferença na taxa de ‘cura virológica’ (desaparecimento do vírus no sangue ou em secreções), nem nos resultados clínicos (duração da hospitalização, normalização da temperatura, progressão radiológica)52.
5- Chorin et al.53 relataram alterações cardíacas em 84 pacientes hospitalizados com COVID-19 em tratamento com HCQ e azitromicina. Dado o que se conhece de seus efeitos colaterais, o maior temor do uso de CQ e HCQ em pacientes com COVID-19 é a possibilidade de ocorrerem arritmias cardíacas e/ou morte cardíaca súbita.
6- Um estudo prospectivo, realizado em Manaus (Borba et al.54), foi o primeiro ensaio clínico randomizado controlado do mundo a utilizar CQ para o tratamento de COVID-19. Nele, avaliou-se duas doses diferentes de CQ, segundo metodologia bem estabelecida para a determinação de dose ideal de medicação. O estudo mostrou que a dose mais alta de CQ (previamente reconhecida como segura em protocolos clínicos para outras doenças55–57) não deve ser recomendada para o tratamento de pacientes graves com COVID-19 devido a potenciais riscos à segurança (eventos adversos graves e riscos cardíacos foram associados à alta mortalidade). O estudo serviu de referência para o FDA e para o NIH recomendarem que doses mais elevadas não sejam utilizadas em qualquer situação, incluindo protocolos de pesquisas. Nesse estudo também não se verificou cura virológica até o quinto dia de tratamento, corroborando o achado de outros estudos.
7- Geleris et al.58, em estudo unicamente observacional envolvendo 1446 pacientes com COVID-19 hospitalizados, mostraram que a administração de HCQ não foi associada à redução de morte ou de intubação.
8- Rosenberg et al. 59 em um estudo observacional com 1438 pacientes hospitalizados, mostraram que o tratamento com HCQ, azitromicina ou ambos não foi associado à mudança significativa na taxa de mortalidade intra-hospitalar. Embora mostre um desfecho importante, esse estudo, como todo estudo observacional, apresenta limitações importantes. No entanto, a exemplo do estudo de Geleris et al.56 suas conclusões não foram alteradas após ajustes estatísticos para levar em consideração os potenciais vieses de indicação de tratamento, por se tratar de estudo observacional.
9- Mahévas et al. 60 em estudo observacional envolvendo 181 pacientes, não encontraram redução na necessidade de internação em UTI, uso de oxigênio ou ventilação invasiva em pacientes hospitalizados em uso de HCQ. Alguns pacientes em uso de HCQ tiveram modificações eletrocardiográficas que exigiram a interrupção do tratamento, mesmo com doses mais baixas da medicação.
PACIENTES NÃO-GRAVES COM COVID-19
1- Estudo clínico randomizado realizado na China com 150 pacientes com casos leves a moderados de COVID-19, utilizando altas doses e um tratamento prolongado com HCQ (dose diária de 1200 mg por três dias, seguida de dose de manutenção de 800 mg por dia durante duas ou três semanas), não mostrou melhor evolução dos pacientes tratados quando comparado aos não tratados. A frequência de eventos adversos foi maior em pacientes tratados com HCQ61.
2- Gautret et al.62 realizaram um estudo observacional não comparativo, com 80 pacientes com infeção leve, tratados com a combinação de HCQ/azitromicina. Os autores observaram que um dos pacientes faleceu e outro necessitou de transferência para unidade de terapia intensiva. Os demais apresentaram melhora. O estudo não incluiu grupo controle, não sendo, portanto, possível apresentar conclusões.
3- Million et al.63 avaliaram prospectivamente o tratamento em fase inicial da doença com HCQ/azitromicina em 1061 pacientes com COVID-19 observando bons resultados clínicos e cura virológica. Foi avaliada a negativação virológica em secreções respiratórias, o que sabidamente ocorre na quase totalidade dos pacientes, independentemente de tratamento. Resultados clínicos ruins foram observados em 46 pacientes; 8 morreram e 5 ainda estavam internados ao fim do estudo. O estudo não teve grupo controle ou comparação com controle histórico, e não permite conclusões satisfatórias sobre a eficácia do tratamento.
USO PROFILÁTICO
1- Um estudo retrospectivo rastreou 14.520 indivíduos em uso contínuo de HCQ para várias condições, incluindo artritre rematoide, lúpus, gota, doença de Behçet, prevenção de pericardite e febre familiar do Mediterrâneo. A incidência de infecção por SARS CoV-2 nessa população foi igual à da população geral, indicando que a HCQ não tem ação profilática 64.
2- Uma pequena série de casos (17 casos) evidenciou que HCQ administrado cronicamente em pacientes reumáticos não impediu a infecção por SARS-CoV-265, sugerindo ausência de ação profilática da HCQ.
3- Em outro estudo, realizado com 66 pacientes em uso contínuo de HCQ (em média de 14,2 meses), nenhum desenvolveu sintomas sugestivos de infecção por SARS-CoV-2.
Segundo o próprio autor, o estudo tem limitações, como o pequeno tamanho da amostra, e a provável ausência de exposição a casos de COVID-19 nos sujeitos entrevistados. Não há um grupo controle comparativo66.
4- Monti et al. 67 avaliaram o desenvolvimento de COVID-19 em 320 pacientes em uso de fármacos anti-reumáticos. Quatro pacientes foram casos confirmados de COVID-19 e outros quatro relataram sintomas altamente sugestivos de COVID-19. Dos 8 pacientes, 5 faziam uso de HCQ. Segundo os autores, os achados não permitem conclusões sobre a taxa de incidência de infecção por SARS-CoV-2 em pacientes com doenças reumáticas, nem sobre o impacto clínico do imunocomprometimento na COVID-19. No entanto, ressaltam os autores, sua experiência preliminar indica que pacientes com artrite reumatóide crônica não parecem estar sob risco aumentado de complicações respiratórias ou com maior risco de morrer por SARS-CoV-2.
5- Em outro estudo, 51 de 80 pacientes com lúpus eritematoso sistêmico tiveram COVID-19 e a frequência de internação de pacientes com lúpus em uso de HCQ não diferiu da de não usuários do fármaco68.
Vários artigos encontram-se disponíveis somente em repositórios de preprints. Tais plataformas se tornaram populares, nos últimos anos, por corresponderem a uma forma de compartilhar rapidamente dados de uma pesquisa e obter retorno (opiniões, sugestões e críticas) de cientistas e não cientistas. É importante mencionar que inexiste, nesses casos, a revisão técnico-científica feita por profissionais especializados no assunto (revisão por pares) em revistas indexadas. Por essa razão, tais plataformas anunciam claramente nas suas páginas iniciais:
“Cuidado: Os preprints são relatórios preliminares de trabalho que não foram certificados pela revisão por pares. Eles não devem ser invocados para orientar a prática clínica ou comportamento relacionado à saúde e não devem ser relatados na mídia como informação estabelecida”.
Ou seja, nenhum artigo pré-publicado nessas plataformas deve servir de referência para recomendar ou não um fármaco, por exemplo. Em uma publicação definitiva em revista científica, após a revisão pelos pares, indicados pelo editor da revista, os autores precisam explicar em detalhes os métodos científicos que utilizaram e, se isso não for convincente, o artigo não é publicado. Revistas do mais alto prestígio e impacto chegam a rejeitar.