Publicado em 7 mar 2022
A ética na crise: artigo do Dr. Marcus Lacerda
O Globo – Antes de qualquer discussão sobre a escola sem partido, nos idos de 1990 aprendi que as guerras alimentam economicamente alguns países envolvidos. Guerras são como cassinos, que também parecem estar voltando à moda: você aposta e pode ganhar ou perder. Os Estados Unidos se tornaram a maior potência econômica do planeta depois de vender armamentos para a Europa, durante as duas guerras mundiais.
Nasce daí um grande conflito, que desperta importante discussão ética: mesmo que eu não mate um único soldado com minhas mãos, se vendo as armas, em acordo estritamente comercial, sou corresponsável ou não pelas mortes? Um grande amigo alemão me confidenciou, certa ocasião, sobre a famosa fábrica de brinquedos do avô, na Alemanha, instada a produzir, excepcionalmente, armas para o Exército nazista. A fábrica atingiu seu apogeu econômico, apesar de o dono não concordar com a finalidade do uso de seus produtos.
Financiar uma guerra, stricto sensu, é diferente de vender tanques e armas, sem nenhum envolvimento ideológico. O primeiro torna partícipe; o segundo, nem tanto, passando a imagem de um simples negociante, isento de qualquer culpa ou responsabilidade. Pude ver durante a pandemia da Covid-19 o mesmo dilema ético diante da crise instalada.
Muito pouco se comentou sobre a honestidade do lucro de empresas que faturaram como nunca em meio ao caos. Obviamente, seria falacioso conjecturar que tais empresas contribuíram para piorar a crise, mirando lucros. Aliás, sempre achei a maquiavélica teoria de que a China facilitou uma pandemia por interesses políticos e econômicos meio sem fundamento — no final, todos perdem, de uma forma ou de outra. O bioterrorismo não é mais uma arma inteligente em meio ao mundo globalizado em que vivemos.
Entretanto as leis que regem o mercado não são simplesmente revogadas durante a crise. Oferta e demanda, sem nenhum prejuízo ético, tomam o mercado de assalto e mostram sua face mais cruel. A necessidade de caixões e serviços funerários fez um negócio adormecido explodir e lucrar. Donos de farmácias, isentos de qualquer conhecimento técnico, expuseram caixas de ivermectina, hidroxicloroquina e zinco em gôndolas estratégicas, em muito maior destaque do que propagandeavam máscaras ou álcool em gel.
Hospitais privados aumentaram os preços das internações, e muitos médicos quintuplicaram os valores cobrados pelas consultas. Era a demanda desesperada forçando os preços para cima, como oscila o preço do barril do petróleo ou da saca do café. Quem pode culpar esses empresários? Quem pode incriminar os produtores de oxigênio, quando pessoas morriam asfixiadas? Quem pode retaliar ou criticar o fenomenal aumento de preços de respiradores vendidos para as UTIs em todo o mundo? As empresas que faturaram milhões de dólares produzindo testes diagnósticos precisam agora se redimir? Ou precisamos nos curvar para sempre à indústria farmacêutica, que está colocando fim aos mortos pela doença, vendendo vacinas?
Curiosamente, o mesmo mercado que regula Bolsas de Valores, debêntures, commodities, e vive em permanente luta com ursos e touros, também regula insumos de saúde, que são a diferença entre viver ou morrer. O mercado da saúde precisa ser mais ou menos regulado? Precisamos ser mais ou menos liberais com eles? É honesto que empresas produtoras de drogas inúteis contra a Covid-19 tenham se infiltrado na cúpula do governo de um país para alterar protocolos que deveriam se basear apenas em dados técnicos? É justo fazer médicos desqualificados e oportunistas se passar por cientistas nas redes sociais, para manipular e confundir uma população terrivelmente desinformada?
Uma coisa é certa — quando eu vejo a foto de um ferido na Ucrânia, tento conter meu primeiro arroubo de emoção e penso: quem está enriquecendo com isso e acreditando piamente que é apenas um homem de negócios? As crises têm este poder: relativizar tudo.
*Médico infectologista